aqui foi mar
por cidade intuída
abastos
priscila conceição

gesto#1
~~~
performance/intervenção urbana
~~~
água de meninos, cidade do salvador, bahia, brasil 
Enseada da Água de Meninos por volta de 1950.
Por mais que espacialmente situada para além dos limites do que se entende por centro de Salvador, a região de Água de Meninos teria tido, junto de outros espaços marginais, um papel fundamental na construção da Cidade [central] enquanto espaço de poder; bem como poderia deflagrar, ainda hoje, a marca das diferenciações colocadas pela sensibilidade europeia nos primeiros séculos de invasão.​​​​​​​
Ocupada, durante a colonização, nos séculos XVII e XVIII pelos jesuítas, o seu nome já nos pode servir como provocação à ideia de civilização propagada pelo Ocidente e tão ardilosamente imposta em terras americanas. As versões mais tradicionais remontam à existência de uma nascente de água situada em algum lugar entre a Igreja de Santa Luzia e o [extinto] cais de dez metros que, seguindo para o mar, formava lagoas e piscinas naturais nas quais muitas crianças se banhavam. Fossem elas os sete meninos órfãos trazidos pelos jesuítas e instalados na Enseada de São Joaquim ou as crianças que desciam do Barbalho, teria sido essa ocupação a responsável por popularizar o espaço nos termos que hoje o compreendem: Água de Meninos.
Largo de Água de Meninos em 1890.
O lugar que compreendia nas relações entre Salvador e o estrangeiro/o outro/as outras cidades era significativo, na medida em que sucedia geograficamente o porto da cidade e recebia, da mesma forma que este, embarcações vindas de todo canto, mas sobretudo saveiros com carga proveniente do Recôncavo Baiano. Foi possivelmente a existência dos pescadores, presentes em registros da região desde o século XIX, que possibilitou a criação dessa ponte para além do porto; bem como influenciado o lugar de troca e comércio que ali se firmaria no século seguinte com as grandes feiras.
O continente que se estendia para além do morro não se prolongava por mais de cinquenta metros, contudo as mesmas condições naturais que instigaram a produção da vida ali por parte do povo do mar são as que condenaram a Água de Meninos às faces do progresso. O regime de marés que definia o funcionamento do lugar não se alinhava ao tempo rápido que urgia em ser instituído com a expansão urbana latente, e ao longo do século XX, o que era domínio das águas foi sendo brutalmente modificado em grandes reformas urbanas, a exemplo da construção da Avenida Jequitaia/obras de J. J. Seabra na década de 1910 e do aterramento para o Porto nos anos 1970.
Largo de Água de Meninos antes de 1910.
As duas grandes feiras que se instalaram em suas proximidades, mas sobretudo a grande Feira de Água de Meninos era alvo frequente de ataques por parte do poder público referentes à insalubridade, promiscuidade e até mesmo por incitar a contravenção à ordem. Foram as duas extintas pelo fogo em tragédias que chegaram a ser comemoradas nos noticiários [como a do Sete, em 1934] ou suspeitas de incêndio criminoso [dos Meninos, em 1964].

Por mais que os esforços para conter o Caos das manifestações não-brancas reprodutoras da vida nesses ambientes de portos de mar tenham sido intensos, não foram capazes de exterminar o campo de força que produziam os corpos em relação com o território; contudo conseguiram ser eficazes numa apartação física desses espaços efervescentes em comunicação e conhecimento.
Feira de Água de Meninos, 1952.
Entre 1940 e 1952, é possível ver que na enseada já se aglomeram edificações no sentido São Joaquim, possivelmente como resultado da ocupação da Feira de Água de Meninos.
Após os incêndios em Água de Meninos de 1964, os trabalhadores foram transferidos para a Enseada de São Joaquim, onde dariam forma ao que se conhece enquanto a Feira de São Joaquim, das maiores da América Latina; e no lugar sobre o qual se encontrava a Feira antecessora, hoje se encontra o Mercado o Peixe, que acontece sobretudo em turno oposto - na madrugada.
Região da Água de Meninos em dias de hoje.
Como um mito colocado pelas águas, uma ordem dos deuses cultuados pelo povo de santo, o território da Água de Meninos, mesmo que mutilado pelas avenidas e galpões industriais, parece seguir fiel à tradição daqueles que alimentaram seu corpo, sua terra: a troca, o peixe, o mar. Mas o "desenvolvimento urbano" não cessa de assolar: há um projeto para o deslocamento dos feirantes a um sítio vizinho, mais uma vez ameaçando as moradias e a camada de vida que se acumulara sobre a terra nesses 60 anos. 

O Largo de Água de Meninos, que já foi reestruturado e parcialmente demolido com a construção da Via Expressa, também deve ser, em breve, alvo de novas demolições na encosta - onde há casas - para a passagem de uma alça da ponte Salvador-Itaparica, como afirmam os próprios moradores.
É notório que toda vez que um campo encontra suas vias de articulação e enunciação coletiva, por meio de rupturas diante da malha que permitem a continuidade da vida dentro dos modos pelos quais se a entende, ele precise passar por uma realocação que cesse sua potência, pois esta é ameaçadora.

Desde que se desenvolvem os modos de vida autônomos da Água de Meninos, como com os homens do mar no século XIX ou dos feirantes no XX, o que se enfatiza é uma presença do corpo enquanto meio de efetivação e ocupação da prática urbana. O que os envolve ao território não são objetos de consumo, edificações privadas ou automóveis, mas o corpo integrado, esperto e intuído às formas de sobrevivência e manipulação do território em que se vive e, muitas vezes, se torna.

Por isso que, da mesma forma como ocorreu no passado, se pretende o endurecimento e a maquinicização contínuas da região de Água de Meninos, que tem uma história com o corpo, com a encruzilhada dos sentidos, com o sujeito; mas se dissolve na lâmina de modernizações homogeneizantes, despotencializadoras e destinadas ao corpo maquínico, ao automóvel, à maquina.
​​​​​​​
Impresso distribuído alguns dias antes da intervenção.
​​​​​​​Em uma política urbana em que o desencante é regra, diante de uma terra autônoma e sob risco de mutilação, o gesto é um berro.

Ao caminhar hoje onde era a Avenida da Praia, é possível perceber que, acima do nível da rua, as platibandas de algumas edificações desativadas situadas na encosta respingam água constantemente. em outros pontos, mais água pode ser observada jorrando da montanha. 
Como um vislumbre do rio que seguia seu curso rumo ao mar, quando sustentava o povo e formava lagoa para menino brincar, o que emerge ali é uma fissura da cidade que foi impedida de ser construída, sob a égide de um urbanismo sem chão, sem olhos ou conhecimento sobre a terra sobre a qual se pisa e ditado na oposição entre natureza e cultura.

Numa intenção de evocar lembrança e compor com as reminiscências que a "cultura de mar" teria deixado em Água de Meninos, nos apropriamos das ruínas de painéis que integra/vam pontos de ônibus situados ao longo da Avenida Jequitaia, a mesma que um dia foi beira-mar. Por meio de um cartaz produzido ali, sob os olhos, curiosidade e apoio dos moradores, só fizemos relembrar: 

aqui foi mar.
aqui foi mar
Published:

aqui foi mar

Published: